28 de fevereiro de 2018

PERGUNTA-ME


"Pergunta-me 
se ainda és o meu fogo 
se acendes ainda 
o minuto de cinza 
se despertas 
a ave magoada 
que se queda 
na árvore do meu sangue

Pergunta-me 
se o vento não traz nada 
se o vento tudo arrasta 
se na quietude do lago 
repousaram a fúria 
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me 
se te voltei a encontrar 
de todas as vezes que me detive 
junto das pontes enevoadas 
e se eras tu 
quem eu via 
na infinita dispersão do meu ser 
se eras tu 
que reunias pedaços do meu poema 
reconstruindo 
a folha rasgada 
na minha mão descrente

Qualquer coisa 
pergunta-me qualquer coisa 
uma tolice 
um mistério indecifrável 
simplesmente 
para que eu saiba 
que queres ainda saber 
para que mesmo sem te responder 
saibas o que te quero dizer "

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'
Foto: Reprodução de um quadro de Tim Parker

27 de fevereiro de 2018

BOM DIA, MEU AMOR


"BOM DIA, MEU AMOR
*
Acordo-me. Acordo-te. Sorrio.
E sobre a tua pele que a minha adora,
navega o meu desejo, esse navio
que sempre parte e nunca vai embora.

E como um animal uivando o cio
de um milénio, um mês ou uma hora,
não sei se morro ou vivo, ou choro ou rio,
só sei que a eternidade é o agora.

E calam-se as palavras, uma a uma,
feitas de sal, saliva, dor e espuma,
com a exacta dosagem da alegria.

Bom dia, meu amor! O teu sorriso
é tudo o que me falta, o que eu preciso
para acender a luz de cada dia."
*
Joaquim Pessoa
Foto de Borisov Dmitry (2011)

26 de fevereiro de 2018

O que o teu amor me dá...


"O que o teu amor me dá:
a pérola no centro,
a exacta e pequena pérola
por onde a luz se esvai,
num fechar de olhos,
entre nós.

E o riso tão inesperado
nesse campo de cansaço
em que o repouso
cresce, trazendo a razão
aos braços da loucura.

Os teus olhos onde
os meus mergulham, lago
manso da tarde que
empurramos, à janela,
até o dia inteiro
ser madrugada.

E ver-te acordar, como
o brilho que salta de antigas
colinas e se espalha
por frescos lençóis de
onde te roubo, abrindo
a manhã.

Nuno Júdice, in O ESTADO DOS CAMPOS (P. D. Quixote, 2003)
Imagem: Reprodução de quadro de Henri Matisse, Pinterest

25 de fevereiro de 2018

Hoje é Domingo e... a contagem continua!


SONETO

Amor desta tarde que arrefeceu 
as mãos e os olhos que te dei; 
amor exacto, vivo, desenhado 
a fogo, onde eu próprio me queimei; 

amor que me destrói e destruiu 
a fria arquitectura desta tarde 
– só a ti canto, que nem eu já sei 
outra forma de ser e de encontrar-me. 

Só a ti canto que não há razão 
para que o frio que me queima os olhos 
me trespasse e me suba ao coração; 

só a ti canto, que não há desastre 
de onde não possa ainda erguer-me 
para encontrar de novo a tua face. 


© EUGéNIO DE ANDRADE 
In Os Amantes sem Dinheiro, 1950

24 de fevereiro de 2018

Invento-te nas manhãs claras...



"Invento-te nas manhãs claras dormindo ainda em sonhos liquefeitos.

Arredondo os braços
que procuram as noites
inventadas à procura de outro tempo.
O manto da minha aurora
cobre os segredos proibidos de uma casa que não é tua.
O meu peito é agora um planalto
onde as nascentes secaram
matando de sede todas as flores por nascer.
Não nasceram flores, nasceram cactos,
continentes de água,
que guardam as flores esquecidas entre dunas.
E invento-te nos lábios das ondas
que pronunciam o teu nome
no sibilar sussurrante
da espuma .
Inventar-te-ei ainda
quando o nevoeiro te esconder
nos lençóis da noite ou
no regaço da bruma .
Serei os olhos das estrelas,
caindo na tua face
uma a uma."

Manuela Barroso, " Eu Poético III "

Foto: "Forbidden paradise", Mira Nedyalkova

23 de fevereiro de 2018

Promessa

Aproxima-se o 43º. aniversário do meu casamento! Até lá, irei publicar um poema por dia! Dia 1 de Março, espero publicar um inédito meu! Hoje,



"Promessa
És tu a Primavera que eu esperava,

A vida multiplicada e brilhante,
Em que é pleno e perfeito cada instante."

Sophia de Mello Breyner Andresen in "Antologia", Circulo de Poesia Moraes Editores, 1975
Foto: "Spring has sprung" - Joana Do Carmo